A sensibilidade é nossa grande maldição
Um dia vi uma bandeira que dizia: a sensibilidade é nosso grande feitiço.
Mentira.
Para mim, a sensibilidade sempre foi uma grande maldição.
Sentir da forma que eu sinto, a vida e todas as emoções que a atravessam; ser afogada pela inundação dos sentimentos que transbordam meu corpo e inunda meus dias… quase me mata muito amiúde.
Tem quem veja como doença. Já me recomendaram todo tipo de tratamento, de remédio.
Uma vez, um médico homeopata que me olhou e deu um diagnóstico como quem sentenciasse: seu problema e que você sofre de uma sensibilidade extrema. Você sente demais, sente por você e pelos outros, sente os outros como se os sentimentos deles fizessem parte de você. Você sente os sentimentos que outras pessoas sentem mas sequer sabem disso.
Você percebe esse sentir à deriva e pega pra você. Pra sua coleção de sentimentos.
Também teve o psiquiatra, que ao ouvir meu relato de como me sentia e porque eu estava ali me disse: tudo isso que você me falou são sintomas de vida. E a vida tem muitos efeitos colaterais. E os efeitos colaterais da vida passam e mudam ao longo do tempo.
Os remédios, que podem aliviar os sintomas da vida, têm também seus efeitos colaterais que não passam e nem mudam.
Tem muitas pessoas que vem ao meu consultório e de fato tem problemas psiquiátricos e precisam de remédios. Diversas doenças da mente precisam sim ser tratadas, cuidadas, e medicadas. No seu caso, o que eu vejo, é só vida demais e sentimento demais. Emoções demais. E as emoções não são algo que medicamentos vão resolver. São algo com o qual você pode aprender a lidar e viver sem medicar.
Podemos sim medicar, e tornar mais fácil, mas é preciso que você pese o que mais a medicação vai tirar de você além da intensidade das suas emoções, do seu sentir a vida e se sentir viva no mundo.
Pensei muito sobre essa visão dele. Eu de fato, já precisei de remédios. Num momento em que a dor emocional não me deixava dormir, comer, viver. A dor era tudo que havia ali e se alimentava de mim. Os remédios me ajudaram, me salvaram. Mas de fato, me levaram outras coisas e me trouxeram outras em seus efeitos colaterais. Foi uma troca justa e de sobrevivência naquele momento. Dois anos depois, pedi para iniciar o processo de “desmame” da medicação. Queria me re-conhecer sem eles.
E aqui estou. Algumas crises de ansiedade voltaram. E de fato há momentos em que meu sofrimento é muito maior do que eu gostaria e do que me sinto capaz de suportar. Mas, são momentos. A dor não é a constante. Ela se mescla a momentos de felicidade, de funcionalidade. E eu sigo, apesar dela, e mesmo com ela encontro momentos de prazer e felicidade, onde ela cede e deixa apenas os reflexos do que amassou meu peito em alguns momentos.
Tenho pensado que nem tudo que a gente sente de forma muita intensa na vida é de fato doença. Ao contrário, estamos doentes de tanto tentar medicar a vida pra vive-la menos intensamente. Mas as intensidades tem sido patologizadas porque diminuem nossa funcionalidade.
Ninguém tem tempo de sentir a vida e seus efeitos colaterais como precisaríamos sentir. O luto de um parente amado tem que ser superado em até 5 dias (a depender do grau de parentesco e não dos seus sentimentos) e então voltar ao trabalho. Se um amigo morre, você não tem os mesmos dias para que possa superar esse luto. Você precisa voltar ao trabalho. Se você se divorcia, também. Mulheres que tem um aborto, tem também seus poucos dias, e precisam voltar a trabalhar, a seguir a vida, depois de perder uma outra vida que seguia dentro delas.
Abafar a dor, enterrar a dor, como se enterram os corpos, e então, seguir.
Se você se casa, você tem ali alguns dias para desfrutar dessa alegria. Quando é seu aniversário algumas empresas te dão um dia de folga, para que você celebre sua vida.
Nossas emoções são medidas em dias úteis e em quão funcionais temos que ser.
Um luto não pode durar mais de uma semana, a alegria do casamento não pode durar mais que 3 dias.
Tiramos férias para podermos viver. Porque do contrário nossa vida é em função da funcionalidade. O tempo todo.
Os efeitos colaterais da vida, que se prologam para além do tempo que se foi convencionado que eles poderiam durar, se tornam então doenças.
Doença é não poder sentir no tempo e intensidade que os sentimentos precisam.
De fato, por vezes me sinto refém das minhas emoções. Queria agir de outra forma, ignorá-las, controlá-las, sem que me torturassem por dentro. Eu juro que não entendo como pessoas conseguem controlar o que sentem. Não demonstrar o que sentem. Não falar sobre o que sentem. Ou mais ainda, nem perceberem o que sentem. Como é possível não perceber aquilo que a gente sente? Como é possível parecer não sentir o que se sente? Como é possível agir na contramão do que se sente? Ou não agir?
Recentemente assisti a série Treta da Netflix. E ao ouvir a protagonista falar daquele sentimento de chão que ela carrega dentro do peito, eu vi esse chão que eu carrego dentro de mim. Em muitos momentos da série, aparece a imagem desse chão, representando o que ela sente, numa profundidade muito maior do que os acontecimentos da vida dão conta.
A vida perfeita. As conquistas. A realização de sonhos e desejos, em todas as esferas da vida. E aquele chão dentro do peito ainda presente e que se manifesta na explosão de momentos de descontrole e vida em intensidade máxima. O descontrole tem sabor de vida em intensidade máxima. Vida para além das regras sociais.
Vida em estado selvagem.
Sentir num estado não domesticável.
Não existe normalidade que dê conta desse chão dentro do peito.
E por vezes, minha única vontade é entrar dentro de mim e deitar dentro desse chão. Recostar meu corpo e minha cabeça nele e dormir. Descansar de mim. Descansar dele estando nele.
Por vezes meu descanso é estar nesse lugar que ninguém mais parece conhecer. Esse chão de sentimentos profundos, desconhecidos e inexplicáveis. Um chão de sentir em estado bruto que eu carrego dentro de mim.
O chão é a base de tudo que construímos; é o âmago de onde vivemos. É onde tudo pode brotar ou nada vingar. Também é onde tudo pode secar e nada nascer.
Se for de areia tudo sucumbe. Se tremer, tudo pode cair.
Mas qualquer que seja o chão ele é a base sobre a qual a gente se ergue.
É sobre o chão que a gente se levanta. É sobre o chão que a gente caminha. Não importa sua estrutura ou fertilidade, ele segue sendo a base.
Excesso de sensibilidade. Sentir demais.
Esse é meu diagnóstico, ou seja, essa é a minha doença.
Sentir a vida de uma forma mais intensa do que foi convencionado que é o “normal” sentir. Ter mais camadas e uma profundidade abissal de sentimentos em mim do que fomos ensinados que se pode ter.
Minha existência ganhou outra dimensão depois dali e tudo fez muito mais sentido e como consequência fez muito mais sentir.
Talvez o que socialmente faz do meu sentir uma patologia seja pra mim a cura da vida doente que a gente leva mas que disseram pra gente que é o normal.
Não vou enterrar meus sentimentos e seguir meus dias, como tive que enterrar os corpos de quem amei e seguir a vida tentando ignorar tudo o que a morte me levou e também me trouxe. Ou, como tive que enterrar meus sonhos, porque não tinha espaço pra eles crescerem.
Eu não vou enterrar nada mais de mim.
Eu vou juntar, misturar, fertilizar e usar de adubo nesse chão que habita o meu peito e a minha existência.
A sensibilidade é de fato um feitiço, que pode ser bom ou ruim a depender da profundidade na qual ela te habita.
Maldição é a vida que a gente leva, e que por vezes, me faz acreditar que não tem lugar no mundo pra alguém como eu. Que parece não haver tempo para os tempos que eu preciso. Que me faz pensar que minha sensibilidade extrema é patológica. Que pode ser medicada, tratada, e fazer de mim uma pessoa mais “normal”. Como se fosse uma anormalidade sentir intensamente.
Me sinto desencaixada do mundo, vivendo uma outra dimensão. As vezes presa em um tempo e espaço que parece estar forçadamente encaixado nesse mundo, mas sem ser parte dele.
Me sinto uma imagem distorcida da realidade.
Me sinto o próprio chão na qual minha vida toda foi construída, no qual eu caminho todos os dias, sobre o piso do meu apartamento, no asfalto da rua, no carpete do trabalho, na areia da praia, mas que tem sua base muito mais profunda, distante dos olhos, das mãos e dos pés que sobre ele caminham. Chão que eu não sei nem do que é feito. Mas que me sustenta e assusta.